sábado, 30 de agosto de 2014

Rodopio

















No casebre alto do morro,
à luz de lamparina,
a menina cantava.

Aquela melodia
a menina não sabia
o tempo atravessara.

Tinha vindo em rodopios
nos porões dos navios
que chegavam da África.

E era um enfeite
na quentura de um leite
que a mãe-seca amamentava.

No morro foi ficando,
de favela em favela,
no casebre da miséria
como herança da senzala.


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quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Curtume
















Na beira do rio há um bambuzal verde e amarelo.
Os pés fincados no barro se comunicam com as estrelas.
A água do fundo, sorrateira, circula e evapora.
Ali, nunca se usou chinelo.

As lavadeiras batem roupas nas pedras
e se revezam seminuas, em festa.
O vento cheira a detergente e sabão de coco,
e voam marrecas fantasiadas em anjos toscos.

No chumaço das nuvens de chumbo está a felicidade.
Está o sentido de um tempo em que se reverberam
as cordas bambas da saudade.

O vento sacode o vulto denso das roupas.
Os morcegos espanejam suas asas
e chiam algum sentido no manguezal
do sal na noite compacta.

Fechou-se mais uma etapa monótona da ata.
No cheiro dos corpos que dormem,
evapora-se a noite no sereno da madrugada.

Em cada casa, cada palavra foi uma esmola
e fez uma história de vida.
Deixa um cheiro de pólvora na existência sofrida
de mais um dia que foi embora.


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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Essencial

                 















                            Para Karla Nascimento

Não te enganes, minha flor!
O verdadeiro amor é para ser dito.
É para ser expresso de peito aberto e
indefinidamente ao infinito.

No que se faz essencial,
deverá ser preservado
em forma de arrepio numa ponte
na coluna cervical
e ser sempre ser anunciado assim,
exponencialmente, todos os dias:
amor, amor, amor e amor.

O verdadeiro amor sempre será digno
do seu lugar de signo e, amoroso,
decantar o que lhe torna tão precioso:
nuvens, flores e bem-aventuranças do paraíso.

No que tem de volume,
deverá subir ao cume
da montanha mais alta
e revelar, na distância de um tiro
em que o estampido ressoe num grito
aos quatro cantos, o quanto vale dizer eu te amo.
O quanto é importante essa insanidade
e o tanto que não deve fazer efeito o analgésico
para essa felicidade que dói no gozo
e para a qual não se quer nenhum remédio.

No que tem de lembrança, deverei lembrar-me
de quando sonhei viajar por onde nunca estivera e
agora, sentado mudo numa cadeira velha,
posso, agudo, embarcar em confiança
na composição de uma odisseia.
Posso, enfim, ser herói e rodar a esmo numa caravela
no lapso de um segundo num suspiro fundo,
e dissolver dragões em novas quimeras.

No que tem de alegria,
posso dizer que na amplidão de um salão,
esse amor é o armazém arrombado onde se vaga
sempre familiarizado com as menores coisas.
É onde se perderam as velhas misérias
para inaugurar a estação em que as folhas põem-se moças.
Num lugarejo ermo, dentro do peito,
esse rasgo de liberdade tem a força vadia
do grito noturno da jovem raposa.

E é nesse fluxo contínuo de menino,
meu amor, que eu digo indefinidamente que te amo
e ando colecionando todos os dias aves e pios
como quem desce o rio e, após
muito esperar, pegou o longo fio de um sonho
e costurou o cobertor no calor
dessa febre chamada de amar.



* Parabéns, minha flor! 28/08/2014
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terça-feira, 26 de agosto de 2014

A caverna


















Olhando para dentro da caverna
é como se me houvesse um anestésico.
Tenho os olhos pesados
de clarões e tempestades.

Tenho a alma em tapeçaria ardendo seus fogos,
mas esses não são perigosos.
Os da caverna são fogos mínimos de fósforos.
A todo instante, o disfarçado cesto de vexame
está nas mãos de um figurante que não se sabe
em vertigem fulminante.

Esconde-se do verdadeiro clarão
que está estendido lá fora.
Clarão que é faca e foice,
folha e lâmina ofuscante,
porque é fogueira de cozinhar os miolos.

Na sombra abundante e fria, a caverna é
a minha ilha, a minha quinquilharia,
meu confortável aconchego de degredo,
meu sono profundo, a minha privação do medo.

Mas é lá fora que existe a minha saudade que chora.
A minha atenção além dessa frincha de luz
vai muito além de um raio escapado na parede.
Raio pintado num quadro onde o Norte
orienta-se nos lamaçais de Van Gogh.


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sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Luminária





















Na luminária da sala está desenhada a ave
parada em sua plenitude libertária.
As correntes estáticas aprisionam
a sua lucidez espantosa na Arte
e as nuvens cremosas deixavam-se trespassar
por um golpe de luz feito mártir.

A fome dos micróbios pelas aves estagnadas
não se faz de rogada naquele céu precário,
de cenário e poente enfeitado,
onde não se pode voar com os pés descalços.

Ali, com muito custo,
pousa-se e canta-se baixinho nos galhos,
o caco da vida se robustece a custa de pesados fardos,
e a gentileza extraordinária convida outros pássaros
com sua voz de máquina para muitos entusiasmos.

Em nossa vida ordinária há também uma guerra
a ser vencida no leito de palha:
uma guerra que fará viúvas as nossas astúcias
de um céu que manda aves e fogo-fátuo que desmaia.

Na unção dos que vão estão registradas as semanas espigadas.
Está essa miséria acesa em carvão de pedra
e a vontade pungente de realizar muitas quimeras.
Está o sol caindo em cheio na cerca de arame
na expectativa indigente de alguém que ame.
Estão as asas paradas dos pássaros numa alegria estranha
e a plataforma quente numa tarde breve em chá de pitanga.



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