quarta-feira, 30 de abril de 2014

A Melodia














             Para Lina Mendes                                       


Quando toca, o músico evapora-se
aos poucos rumo àquela
viagem que incendeia
toda a teoria vegetal em que as plantas
já não são verdes e sim feitas de notas
musicais com a coloração de bolhas de sabão.
Quando toca, o músico leva a si
e aos outros a uma tonalidade furta-cor
em que o céu tinge-se de uma substância fulva
de manga madura e a música magistral recolhe
cada bolha sonora do instrumento e as espalha
formando uma nova província.

Enquanto toca, o músico olha para
dentro de si e deixa-se perder
no lombo dos trechos melódicos
que vão troteando aos poucos e, depois,
adquirem asas e se elevam,
deixando para trás o universo
depauperado das carências. 

Os gestos e as expressões ecoam a
a paisagem acantilada dos
penhascos enérgicos e um lago sutil.
Cada trecho singelo resgata todos
os que costumavam ficar em vigília
extremosa e, nela, nada ouviam ou enxergavam.
Os acordes amolecem agora os ombros macilentos
e, lentamente, envolvem o embarcadiço
numa fita de seda esvoaçante.

O sabor das notas é o mesmo de uva
madura dependurada nos colchetes
que se dispõem na armação de uma pauta.
Cada stacato sacode a parreira
e retira uma sonoridade madura da videira.
A melodia torna-se camélia
pousada na alma porque
dissolve as varandas de ferro e
as amarras postiças e ríspidas.
Com a música, o espírito levantou-se
do leito sórdido e instalou-se numa expedição
a lugares batidos de sol
que antes, pouco brilhavam
na frincha escavada e oferecida
aos olhos maravilhados.

As cordas inúteis que pendiam
a escada aparatosa libertam
o mundo dos acordes e, com eles,
aparece a paisagem de diferente fisionomia.
No lajeado dos pedregulhos,
forra-se o veludo mudo das pausas
enevoadas e, no chão,
cintilam as pedras preciosas.

O céu poente, revolto e rubro, descortina-se
ao epílogo o crepúsculo na quietação
de um subúrbio e a música vai diminuindo.
Cantarola a pacata vida de um rio
em seu murmúrio e some no vento
de um suspiro marinho.
Termina, então, a fuga ligeira de quem,
enfastiado, visitara um lugar
que sempre estivera tão longe
e tão perto de um mundo recém-descoberto.
Caiu, por tempo ignorado, a parede severa
de passagem estreita, de teias de aranha
tecidas em ruínas abandonadas.
Rompeu-se a gravidade dormente
em nome de uma estrada apalaçada
enfeitada em rosas e grinaldas, e
que ficava embaixo do entulho de mármore
e dos batimentos da alma.
Evaporou-se, enfim, o ar velho das antigas
monarquias em nome do extraordinário.



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sexta-feira, 25 de abril de 2014

FAROL



















O irremovível farol, tem na altura
o benefício de sua estrutura.
Suas engrenagens movem-se com o zelo
na medida certa de cada apelo e
nunca haverá cansaço em sua solidão.
É o grande guia e, na perplexidade
de algum momento insólito,
diante dele, os grupos miseráveis
de pássaros animosos acalmam-se
e não abraçam a apatia.
Ao contrário, sentem o alarme submarino
dos peixes e voam na retina do espetáculo
na faina de interceptá-los,
fazendo do céu um escritório de bordados.

Na imensa luz de um sol recolhe
em noite sombria todos os barcos
e deposita-os no pano de linho com cuidado.
Guarda-os bem guardados
dentro dos muros de hera compacta
onde não haverá azáfamas.
Vigia a noite em observatório,
intensificando o lume de cada estrela
e espargindo ao longe a sua beleza.
Orienta a embarcação que perdeu-se
num mergulho no escuro e que,
chamando por socorro,
encontrará o caminho mais curto.
Confirma-se a todos os que o vaticinaram
na pedra angular, clareando a medonha eclipse
e, nos passos firmes de um pai,
oferece segurança na crepitação juvenil das horas.
Está acima do sortilégio das ideias
e das palavras porque a amplitude
é sua senhora e os recursos,
em exigüidades, nunca alcançarão
todas as suas possibilidades.

A maresia não alcança-lhe o corpo soberano
e é na condição incorruptível
de qualquer engano que ali permanece.
Ao que flanava sem rumo,
oferece a mansidão de um ancoradouro.
Na distância vasta e desesperada dos desorientados,
é um monte sobranceiro.
É estrada bordejada de flores para
o enxame dos que buscam paz na insalubridade.
Para o malabarista desatento
é baluarte numa constante vigília.
Para qualquer indagação é resposta antecipada
ao que inesperadamente se pontifica,
e ergue a mão aos que são salvos no sobressalto.
Revela a sombra camuflada
do que antes havia se esgueirado
porque não se lhe esconde nenhuma perfídia.
É obra portentosa que se fez
e se fixou no eterno,
indo morar na vértebra de um mistério.
Recolhe os ventos da tempestade
e os apascenta em silêncio.
O mesmo silêncio que não se ouve
no matraquear das máquinas que regulam destinos.
No vai-e-vem das dúvidas, impõe singeleza às ondas
e uma infinita certeza de que o caminho do regresso,
numa distância longa, possui a estreiteza de uma ruela. 
Dos campos, recolhe sussurros elegíacos das preces,
e liberta a todos da escravocracia nas panaceias.
Porque assim o é, recolhe e guarnece
a camaradagem e a leveza dos humildes nas vésperas.
É invisível nas estúrdias do arrebol, mas assoma-se.
É sustentáculo e porto seguro este farol.
De tudo o que se passou, existe e haverá,
recolhe as mechas do tempo - barbeiro pândego -.
e guarda-as numa caixa de estojo de futuro.
No cenáculo embevecido,
desenha-se em quadro abstrato numa noite
derretida no ardor da vida,
e desabrocha no espaço fundo da galáxia
a aurora radiante onde antes nada havia.




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sexta-feira, 18 de abril de 2014

A Música





















E ela esticou o couro cru dos cururus
na retumbada esperada que bateu maracatus.
O frevo cedo que passou sua sombrinha
atingiu a avenida colorida de Olinda.

E vinha marcha com a banda repicando
aquele verso embalado pela Lia da ciranda.
E ela rodou a noite toda impressionada
com a toada que nascia bem no brejo das taboas.

Na mesma sala de concerto onde tocava
o corta-jaca, acenava a paisagem da sonata,
e ela gostou de avistar o rock´n roll naquela casa
onde ficava a sinfonia assinada.

E se vestiu mademoiselle respeitada feito
a filha que tocava na guitarra Chuck Berry
e foi seguindo a rodovia animada, espalhando
a magia com a turma que dançava.



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domingo, 13 de abril de 2014

Eu e a flor


















Eu hoje encontrei o amor
plantado ao lado de uma roseira amarela.
As formigas traziam-lhe cubos invisíveis de açúcar
e ele, aberto também em  flor,
dizia-me que o exemplo é o melhor professor.
Em sua graça benigna desnudava todos
os seus enigmas mais freqüentes
de que falam toda gente.

Tinha a fisionomia de uma criança
que descobre o mundo,
balbuciando uma cantiga
e, olhando ao longe
uma lâmpada acesa na forma de estrela,
confia que ela realmente assim seja.
E assim, naquela anunciação tímida
e com uma fragilidade mínima
pode, na fumaça da incerteza,
apropriar-se de um nítido abrigo num casulo
de seda pois a esperança inabalável sempre
será a sua irmã primeira

Eu hoje encontrei o amor.
Estava parado e sorria-me o tempo todo.
Era pequeno numa gota de sereno
e disfarçava a substância celestial
num ar tão natural que nem era percebido.
Diante dele, todo colorido furtava-lhe
a presença amena e era necessário
vista pequena para que fosse visto.

Eu hoje encontrei o amor.
Estava bem ao lado de uma roseira amarela
e usava uma roupa tão simples
que pouco se achava capaz de ser
de sua natureza tamanha gala.

Aos corações de egoísmo insinuava-se
tranqüilo aconselhando-lhes
as formigas e a roseira amarela
que duram na eternidade de suas vidas
um destino de simplicidade e fazem
de cada dia uma aposta de lealdade.

Eu hoje encontrei o amor
ao pé de uma roseira amarela.
Estava ali me esperando com pés
descalços adoçados e era
uma flor tão miúda que quase
parecia nula em sua cor.
Era isso mesmo: uma dádiva ao lado
de uma roseira que estive admirando
a manhã inteira numa simples flor.




sexta-feira, 4 de abril de 2014

Geometria






















Porque linha é a trajetória
de um ponto, eu vou andando.
Sou andarilho disposto e levo
bem pouco além da roupa.
Converso com todos
e coleciono relatos porque o dia
é longo, rústico e delicado em louça.

Porque a trajetória da linha
que se move é um plano, eu sonho.
Estou em vários lugares e,
planando nos ares, eu trabalho
e configuro quase tudo o que encontro.

A viagem nem sempre é agradável,
mas vale a pena porque lá de cima,
desce a mão serena e constante
que conduz os meus passos às vezes
vacilantes em cena.

Porque a trajetória de um plano
que se move é volume,
busco o tempo todo alcançar
o cume não por glória
engrandecida com o prêmio,
mas por saber que lá em cima,
onde me espera uma legião de andarilhos,
estão as flores dos campos elíseos
e a luz pela qual me empenho.

Muito além do ômega
está o reino do meu geômetra.
Eu tenho muitas formas além
daquela que aparece no espelho
e carrego a sobra de tudo o que me foi
mais verdadeiro.
Para cada século, eu guardo um diferente verso
e pareço iniciar-me do zero,
mas o oceano está em minha essência
de humano e o vento divino sopra
minha vela no ritmo das ondas
que movimentam sem pressa.