segunda-feira, 14 de julho de 2014

Apostolado de gafanhoto















Aquela sepultura em forma de igrejinha é do João:
João Cabisbaixo, que andava com a enxada
e a garrafa de café debaixo do braço.
A flor do seu destino encheu-se de ímpeto e juntou-se
ao zumbido das colmeias.
Juntou-se aos gafanhotos desbravadores de pios
de passarinhos, que fazem seu apostolado andando
léguas e mais léguas.

Fez da longa caminhada o império de protestos
pela causa das levas de sem-terras que andam feito pétalas
e que são fagulhas de flores com olhar de nuvem.
Que erguem quiosques escuros à beira da rodovia,
prefigurando a luta na disputa gritada.
E assim, desde os recantos longínquos, evoluiu
o seu grande sonho por uma nesga de terra abandonada.
Sonho de revolução na escassez da herança deserdada,
na esperança e na presunção de quem golpeou
a enxada com a vida cabisbaixa.
Combateu seu bom combate, fazendo daquela andança
o seu teor e o seu tear.
Do litígio fronteiriço fustigado, dos infortúnios
por um pedaço de paraíso com feijão, cana  e mandioca,
veio a morte, com a sua inócua razão.
Agora, esta igreja caiada de cal azul aguado
e um epitáfio nos dizeres de um sonhador que, em liturgia,
acabou fazendo jus a atenção de um renomado pistoleiro:
“Fiz, finalmente, destes palmos de terra
meu definitivo paradeiro”.


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domingo, 13 de julho de 2014

Espetáculo















Eu me guardo na casa da amada mansamente,
como quem se guarda em si ausente,
deixando esquecida, na curva, a picuinha mais escassa,
embrulhada em papel presente na varanda da casa.

Cada lampejo meu é um lugarejo de palavra
no qual compartilho a emoção palmilhada.
Do meu amor florescem sinfonias de pássaros
no canto que dedico à legião dos desterrados.

Pois quem ainda não encontrou o amor
é como se fosse uma árvore vazia e oca,
sem a seiva da vida e sem a alegria moça
que faz da vigília, objeto de todo esplendor.

Cada momento agradável é biodegradável
e permanece instalado num ar de setembro.
Ar de novidade e de surpresa inabalável,
acendendo a felicidade num dia cinzento.

As picuinhas, que deveriam ser obstáculo,
são, em verdade, parte indissociável do espetáculo.
Cada um de seus motivos, em sua pegada,
desenha nas pedras a direção da jornada,
que tem fogo, cheiro e flores de paraíso.


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quarta-feira, 9 de julho de 2014

Lá no Morro do Cruzeiro



Na chuva passada
A enxurrada trouxe pedra
Verde engarrafada,
Cor-de-rosa, azul, canela.

Na chuva passada,
Lá no Morro do Cruzeiro,
A enxurrada foi daquelas
Que arrasta muita pedra.

Fui brincar na lama
E atolado até a canela
Brinquei muito, brinquei muito,
Catei pedra, catei pedra.

Na chuva passada,
Enquanto trovejava,
Eu, na lama, procurava
Um tesouro na enxurrada.

Na chuva passada,
Catei pedra, achei pedra,
Verde engarrafada,
Cor-de-rosa, azul, canela.




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quarta-feira, 2 de julho de 2014

Os números imaginários

















Os números imaginários estão, agora mesmo,
numa realidade onde o luar é intenso
e, por isso mesmo, escapolem do bom senso
daqueles que se julgam na racionalidade.
Não haveria, em um número imaginário,
o padrão aceito pelos normais
pois na gruta em que vive, ele ainda
se oculta no jamais até que venha
a descoberta futura.
Para se chegar até esses números
é necessário embarcar-se numa viagem
mais intuída do que constatada,
pois os números imaginários
escondem-se atrás da folhagem
de uma imensa árvore cortinada.
Os números imaginários habitam
o sentimento de infinito que reduz
tudo o que sabemos a um cisco
na resposta misteriosa que não se prosa.
Alcançá-la, significa desmanchar o ferro
das antigas envergaduras em nome de um
passeio inseguro na aventura de uma nova busca.
Os números imaginários estão onde estão
todos os que se foram e aqueles que ainda chegarão.
Em seu corpo algebricamente fechado há uma fenda
por onde escapam soluções em oceanos
que visitam e alagam os nossos sonhos.
Depois de molhadas pela ideia,
as imagens formam uma melopeia
e galopam mundo afora abertas
na evolução das descobertas.
Porque não ocupam nenhum espaço ou posição
definida na sabedoria infinita, os números imaginários
não se auto-proclamam e nem se dizem.
São evidentes, embora sejam reticentes...
Os números imaginários moram no acaso e são mágicos.
Nascem da sorte de um segredo como que
por um descuido tivesse sido revelado.


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