sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Trânsito












Com uma lanterna,
eu ilumino o espaço onde não haja
litígios fronteiriços nem espinhos,
porque a alma a tudo sonda
no vai-e-vem de uma onda.
Embrulho-me em papel-presente
e deslizo em palácios de vento
e colchões de ar quente
para salvar tudo no sumidouro
revoluto de um segundo.
Contra a inocência,
o resto de noite assombrada
nada pode ou dilacera
se, com a multidão apinhada,
eu também sonho e me engano
na avenida alumbrada
da manhã de madrepérola.


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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Ezequiel e Elias













Nos campos de Ezequiel existem flores vivas
e limalha inexpugnável de ausências dissolvidas.
A cada lembrança, surge uma nova hidra
em  aliança a um arquipélago de ilhas.
Não é só em uma, mas em muitas linhas,
que se recurva o tecido da blusa fina.
Quando a noite é fria, as vias de fatos guardados
escutam a história que grita num baú fechado
e, antes que se faça esquecida, estende
suas trilhas numa escala infinda.
Essa onda de tecido liso não proclama,
mas derrama a memória do seu mito.
Queda-se calada na casa do delírio
e profetiza o lado inverso das coisas
onde pessoas alcancem um sentido.

No carro de Elias, viaja outra profecia.
Queima-se um vento de sarça com cheiro de mirra
e tudo viaja ao mesmo tempo no ainda.
Vaga o quadrante das estrelas
e passa em voo rasante de cometa
sem que alguém o perceba,
porque é detrás das coisas
que valorizam as pessoas
que existe essa casa aberta
sem paredes, portas e janelas,
onde repousa o que mais se deseja.

domingo, 11 de janeiro de 2015

A lavadeira














A lavadeira, quando se levanta,
gargareja e balança a anca.
Leva água ao céu da boca
e lava fresca a varanda.

A lavadeira, quando submerge
na beira com voz de anja,
faz festa a manhã inteira na barranca.

Ao meio-dia de manteiga derretida,
lava a vasilha de fazer comida
e chama chuva, cantando murcha,
em posição de telha-cumbuca.

Quando perambula de volta ao grotão,
espicha a perna na bicicleta
e pedala suada na tarde ordinária,
levando rouca a trouxa de roupa
e a panela na mão.

Quando chega, os braços em tiras,
pano na cabeça, canta ainda.
Faz janta para a filha e fala da birra
ao vencer aquele dia com a pele
cheia de pés-de-galinha.