sábado, 7 de novembro de 2015

Vulto de Rosa
















Uma senhora sorri e me olha com olhos fixos
que dizem-me algo
da profundeza dos náufragos
onde a silenciosa alga vive
em forma de bandeira e trabalha
como quem não almeja
a glória fugaz de um espetáculo;
onde cintilam os astros
no fundo mais profundo do vasto pasto
em que não sou ninguém senão um vento,
um quantum de energia, um pensamento...
É sorrindo que ela me olha ternamente
e diz coisas tão lindas e silenciosas,
que o alcance precário das palavras
apenas contempla sua galáxia luminosa.
Pergunto qual é o seu nome
e ela, misteriosa, sorri
nesta expressão tão familiar!
É como se a alma abrisse o seu mar
e uma sinfonia de sereno chegasse num simples aceno
para eu entender coisas que nunca aprendi
dentro desse olhar carinhoso de flecha
com que ela me atravessa e me diz que está aqui.


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segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Presença













Mas qual é o mérito
de um cemitério
se lá depositam-se
as casquinhas de um pretérito?
Se lá se desgastam
antigas roupas velhas
que já não servem?
Se no adro dos espaços
andam em meio a flores
e sabiás canoras
aqueles que acreditam-se
que foram embora?
O que dorme em minério
é um rio seco,
um galho vesgo,
uma pedra a esmo.
O ouvido do espírito, não,
está no vento pleno,
pulsante e vivo
e, mesmo que invisivelmente
pareça ausente,
pode, muitas vezes 
com o coração,
ser sentido.


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sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Festa












Em tempo de chuva
bunda de tanajura
é igual jabuticaba:
nunca que acaba.

Vai correndo, Duda,
com a mão na lata,
chamando à luta,
a meninada!

Cai na gordura,
cai embalada,
pois a fritura
é farofada!

Vem tanajura,
vem despencada
enquanto a chuva
deu uma parada!



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quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Vestido Branco














Na educação dos afetos, 
canta a voz do sereno
a melodia em libra 
porque é tamanha
a harmonia que a ela 
nada escapa
ou se desperdiça.

Sua voz enigmática 
acalma as borrascas
e no solo seco florescem carinhos.

Onde insistiam-se os desacordos,
desmancha-se o ponto lodoso,
e as contrariedades ficam sorrindo.

Apagou-se de vez o fogo intermitente
fadado a durar inclemente.
A ofensa, que nasceu para durar um século,
não causa mais dor ou dano de espécie alguma.
Chegou o perdão com um sopro de abano,
trazendo a paz que a tudo cura.
Na troca da paixão por compaixão,
transforma-se todo o efeito da música.


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sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Canção do Exílio

                   














                   Para Vinícius Cabral, um menino de ouro

A minha saudade daquela paisagem
caminha ao lado da coragem
de vencer os percalços
na escalada para o alto
em trilhas de pedras
e espinhos de um único caminho
porque lá em cima,
perto das nuvens,
está o meu ninho de passarinho.

Meu leito acolchoado me espera
quente, suavizado e confortável
neste lugar de palmeiras
e sabiás inimagináveis,
onde amigos muito mais
que amáveis assopram
a gentileza amorosa numa flauta.

Mesmo distante, de vez em quando,
vem de lá a música instigante
e o sentido adormecido
acorda por um instante maravilhado
com tamanha beleza, suspira,
e glorifica a vida no que deseja.

Quer inundar-se daquela luz tão alta
e vestir-se dela para viajar
na claridade das esferas,
onde o vento encantado da flauta
faz rodopios em redemoinhos
e por vezes enche de esperança
o coração cansado de um peregrino.




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sábado, 29 de agosto de 2015

Nobreza

















A humildade digna
é amiga
fidelíssima
da renúncia.
Ao perder, ganha,
acumula e apanha
a pesada cruz
usando um capuz.
Guarda dentro de si
a tormenta de um frenesi,
mas a confiança
robusta,
faz de sua
justa renúncia
um tempo de paz
íntimo em espaço
humílimo
de volúpia.



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quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Imaginação













Em minha mão aberta
existe um pássaro
quieto que repousa o século.
Em sigilo, não quer
anunciar a rota
que conduz ao Paraíso.
Permanece vivo e quieto
quando o mundo está colérico.
Quente, inventa-se
no inverno indiferente e ali,
no mapa da mão, estuda a planície
riscada de ruas que vão.

Abraça tudo o que existe na superfície
e, num suspiro, devolve
o tesouro conquistado
para que seja novamente
ignorado e conquistado em vão.

Quer o silêncio do vento
quando ronda as casas
e o alívio das almas lavadas.
Quer a distância das falas
e do ruído da multidão.
Descansa ali quieto,
mansamente e justo,
esperançoso no crepúsculo
com a chegada das estrelas,
pois, mesmo na floresta da noite,
existirão belezas
capazes de afugentar o dragão.


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sexta-feira, 24 de julho de 2015

Um nome na areia














O céu dentro de si é um pássaro calado,
observando o espaço vago.
Dia desses, quando for chamado,
haverá de bater asas do alto
e de avizinhar-se bem próximo de nós,
que escrevemos na areia o estatuto do Amor
na  pretensão de que a palavra
sobreviva às borrascas
e às tempestades nunca esperadas.
É desta forma que eu escrevo na areia
a minha verdade máxima
que não é exclusiva ou inédita:
amar, amar e amar até anular
a força das reações intrépidas.

Essa minha voz é polifônica
porque canta ao lado da boa-vontade agônica
daqueles que pastoreiam o lume
da noite e anseiam o mundo diferente,
numa delicadeza mais abrangente.

Meu testemunho na areia é meu testamento
em amizade familiar com o vento,
que conhece o caminho de sal dos oceanos
e o alívio para os desenganos.
Escrevo sozinho para esse sopro,
que remove o pó com carinho
numa espiral dançante
e o conduz aos reinos beligerantes
em que a paz esperada
no clarão da madrugada
é o íntimo pedido de um coração aflito.
Chegue lá longe onde nem sei,
a minha esperança em forma de palavra sussurrante
na caverna dos ouvidos
e ela não será minha, mas nossa.
Nós, que cantamos o mesmo coro,
que falamos a mesma língua,
que comungamos o mesmo princípio do Amor sem nome,
sem dono, sem bossa,
depositado na areia para viajar no vento e na cheia
até os longínquos destinos a que possa.




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quarta-feira, 17 de junho de 2015

Natureza Real













                                           Para Edileila Portes

Aquela mulher que vive no rio
com o corpo escamado em vidrilhos
e mãos magras de domingo,
deita-se rainha ao meu pasmo de menino.
Cada vez que move-se lânguida e solta
no espartilho de lantejoulas,
balança as pétalas de lambaris,
penteia o cabelo de colonião,
sustenta um silêncio de peixe, e ri.
E quando ri dentro do silêncio,
olha-me com olhos fixos de vento
e me revela que existo seco
além de tudo o que é barrento.
Que além dos ossos existo assim
esvoaçante feito um lenço
a navegar espaços recônditos
e lúcidos nos sonhos
abertos do horizonte imenso.
Que o espírito, em seu vagar científico,
é quem vive de fato a natureza real
muito bem camuflada pela razão animal
mas, apesar de oculta,
totalmente absoluta e espiritual.



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sexta-feira, 1 de maio de 2015

O Curupira











Não existe sombra por onde se esconda
algum covarde, pois que em toda parte
há um curupira que tira e destrava armadilhas,
há um lobo guará capaz de um fogo
que consumirá a montanha da base ao topo
numa façanha de pequeno esforço.
Para todo mistério oculto
que se enovele num vulto
no fundo de um vale onde dormem jazidas,
existe aquele dia que um dia chegará.
Antes mesmo que a luz da manhã se revele
abrindo a nave, a voz da verdade
há de  intimar tudo o que  antes vivia
no confinamento dos constrangimentos
e, por absoluta necessidade,
alguma mentira há de esgotar a vida
por não haver outra maneira
de encolher-se costumeira em planos
de enganos e intrigas.


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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Selfie



















Na teia da aldeia de McLuhan,
tarde em Zimbabwe, 
manhã em Roterdã.
Na velocidade têxtil 
e hábil de um alfarrábio,
um constante rolimã 
na página estendida
com a notícia do dia, 
mas ela não está nem aí.
Está sozinha nos afazeres de rotina.
No que abre e fecha 
a flecha de um satélite na retina,
fotografa o flagrante 
no instante dela na piscina.
Sonâmbula e esquecida, 
ela não vê a tarântula em sua vida
e deixa o tempo correr 
porque o tempo não vaticina.

A guerra do Iraque 
foi um baile, e o neon
no cheiro da Grande Maçã 
não é doce ilusão em braile,
porque a rainha não se sente cega 
e analfabeta na escuridão.
Depositou-se envolta 
numa polpa de caqui
e a dificuldade alheia
não lhe interessa na pressa
em se exibir.
A sensualidade é a sua única verdade 
no concurso de uma beleza de areia
que desabrocha feito rosa
na beira da praia em maré-cheia.


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sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Trânsito












Com uma lanterna,
eu ilumino o espaço onde não haja
litígios fronteiriços nem espinhos,
porque a alma a tudo sonda
no vai-e-vem de uma onda.
Embrulho-me em papel-presente
e deslizo em palácios de vento
e colchões de ar quente
para salvar tudo no sumidouro
revoluto de um segundo.
Contra a inocência,
o resto de noite assombrada
nada pode ou dilacera
se, com a multidão apinhada,
eu também sonho e me engano
na avenida alumbrada
da manhã de madrepérola.


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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Ezequiel e Elias













Nos campos de Ezequiel existem flores vivas
e limalha inexpugnável de ausências dissolvidas.
A cada lembrança, surge uma nova hidra
em  aliança a um arquipélago de ilhas.
Não é só em uma, mas em muitas linhas,
que se recurva o tecido da blusa fina.
Quando a noite é fria, as vias de fatos guardados
escutam a história que grita num baú fechado
e, antes que se faça esquecida, estende
suas trilhas numa escala infinda.
Essa onda de tecido liso não proclama,
mas derrama a memória do seu mito.
Queda-se calada na casa do delírio
e profetiza o lado inverso das coisas
onde pessoas alcancem um sentido.

No carro de Elias, viaja outra profecia.
Queima-se um vento de sarça com cheiro de mirra
e tudo viaja ao mesmo tempo no ainda.
Vaga o quadrante das estrelas
e passa em voo rasante de cometa
sem que alguém o perceba,
porque é detrás das coisas
que valorizam as pessoas
que existe essa casa aberta
sem paredes, portas e janelas,
onde repousa o que mais se deseja.

domingo, 11 de janeiro de 2015

A lavadeira














A lavadeira, quando se levanta,
gargareja e balança a anca.
Leva água ao céu da boca
e lava fresca a varanda.

A lavadeira, quando submerge
na beira com voz de anja,
faz festa a manhã inteira na barranca.

Ao meio-dia de manteiga derretida,
lava a vasilha de fazer comida
e chama chuva, cantando murcha,
em posição de telha-cumbuca.

Quando perambula de volta ao grotão,
espicha a perna na bicicleta
e pedala suada na tarde ordinária,
levando rouca a trouxa de roupa
e a panela na mão.

Quando chega, os braços em tiras,
pano na cabeça, canta ainda.
Faz janta para a filha e fala da birra
ao vencer aquele dia com a pele
cheia de pés-de-galinha.