quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Moto perpétuo

















Quando uma velha cadeira de balanço medita,
nela, uma alegria estranha se pontifica
porque o destino é na forma dos intestinos.
Sob as pequenas ruínas imperceptíveis do passado
desliza, então, no rumo mais adequado de compreender
algum antigo significado.

Enquanto visita as velhas rivalidades
e as mesquitas das animosidades,
examina a história aguda de infindáveis luas
no vai-e-vem das marés absolutas.
Compreende que tudo é vão na altura do chão
e tudo se torna pequeno diante do sereno.
A cadeira velha adormece, então,
em algum sono de mansidão,
sabendo que as franjas do tempo solene são,
na verdade,  dentes que digerem 
a dureza dos momentos infinitamente.
Úmida, ela balança-se e coleciona-se rediviva
no fundo das retinas,
acumulando vivência
em cada marca de ruína
no eterno aprendizado de leveza
que compõe a vida.




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quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Finados

















Findadas as coisas,
elas deveriam ser apenas examinadas
pois não existe fim
nas coisas passadas.
A manivela que movimenta
o tempo traz de volta
antigos momentos
adormecidos em âmbar
que desmancham a zanga
e em que se reencontra a quem se ama.
A gordura das juras,
em infinitas pernas
que adentraram pela nossa janela,
reacendem consecutivamente
as luas eternas.

Findados os encontros,
não deveria existir adeus,
se na casa dos contos
existem muitos romeus.
Cada qual,
por mais que seja diferente
e num diferente ritual,
tende a ser o mesmo de antigamente.
É assim que a linha do tempo
na qual se guardam as horas
é, na verdade, um círculo
em que a brevidade do vivido
nunca evapora.
Voltam-se os antigos amores
de outrora em repetidas estações
e diferentes amoras.



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quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Os insetos














Os insetos de Kafka não são apenas as baratas.
Também são os louva-deuses,
espichando-se em girafas,
besouros em barracos,
loucas aranhas em bordados,
e escorpiões nos vãos das tábuas.

Vivem na indigência das praças.
Debaixo dos viadutos,
eles formam vultos
e ficam invisíveis a quem passa.

Ficam à beira do precipício,
alimentando-se de lixo,
e não possuem nacionalidade
ou identidade declarada.

Com uma seta de índio mínimo,
os insetos fazem ataques
em movimento retilíneo
e rolam tempestades das árvores
em ruas mendigadas. 

Nas noites de frio são pernilongos ínfimos,
acionando finos violinos em nosso sono,
e parecem dormir felizes
encolhidos debaixo das marquises,
envelhecendo o corpo de carbono.

A matéria dos insetos que voam
não é muito além das asas delgadas.
Aos enxames, em nuvens polvilhadas,
formam hordas errantes e desorganizadas.
Depois, transformam-se em gases
e, no crepúsculo das tardes,
como se nunca tivessem existido,
desaparecem fugazes e sem alarde.




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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Sopro


















Que a minha voz alcance
a distância transatlântica
e se espalhe supersônica
nos reinados distantes
de todos os quadrantes,
invocando agora a música
num convite de súplica:

Vinde do outro mundo,
sanhaços de coqueiro,
gaviões caramujeiros,
jaçanãs-galo,
gralhas do cerrado!
Trazei o vosso encanto,
sabiás-laranjeira,
jandaias de testa vermelha,
garças-vaqueiras.
Trazei vossa beleza e vossa bandeira!
Vinde aquecer o olhar dos mendigos
e acordar do semblante cítrico
aquele que revira papéis em sua mesa de vidro!
Vinde, falcão de coleira,
coruja de igreja!
Ensinai-nos o lucro das astúcias em viajar lonjuras
e os redemoinhos efêmeros
das estrelas que giram e assopram
coisas em nossos ouvidos.
Trazei o êxtase dos antídotos
para curar o insípido
e  uma litania de agradecimentos
para ser lida numa tarde límpida.
Vinde andorinhas e curiós!
Vinde trazer a flor acetinada
no curso dos ventos
e dissipar o sentido modorrento.
Costurai vosso canto em nosso silêncio,
bico-de-agulha, beija-flor-tesoura!
Trazei vossa energia
e levai a nossa melancolia!
Apossai de tudo, bico-de-veludo,
galo-do-campo, canário-da-mata!
Trazei a alegria que esparrama
em cada coração que ama
e inundai-nos com vossas manhãs ainda na cama!
Trazei vossos pífaros para uma festa!
Vinde uirapuru e beija-flor-do-peito-azul,
quando estivermos nus!
Vinde cambaxirra,
quando não existir mais saída!
Vinde, bico-de-louça, 
quando a esperança for pouca!

Quando fraquejarmos na luta,
trazei da distância funda
os cabelos de Iracema, graúna!
Assim, estaremos em vós
para cantar um canto que não seja outro
senão aquele de arder o fogo
e renovar o verdadeiro sopro
de embelezar a vida
ao fazer a esperança
cada vez mais ouvida!!!



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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Canoeiro
















Ô, meu canoeiro!
Se no vínculo das águas no remanso das pedras rasas
as águas ainda relincham suas éguas na jaula
como se chovessem palmas,
acalma teu coração!
O teu passatempo favorito de olhar a lagoa
com olhos de quem anda à toa
perde o sentido porque possuis um rio.
Viaja então nele, canoeiro!
Dissolve o passado morto,
transformando as rotas nervosas em coisas ociosas.
O tecido do ócio é feito do linho do esquecimento
e, por isso, sempre traz contentamento.

Ao saíres da casa cedo, canoeiro,
deixa que a manhã te reserve algum segredo
e que a surpresa da romã desperte aos poucos
algum ouvido mouco para o colorido devido.

Leva a tua canoa e a tua casa sem medo
por entre as pessoas porque o rio é imenso,
na dimensão do próprio tempo.
Compartilha com elas todas as tuas coisas boas,
porque tua canoa é um presente de navegar nas enchentes
da multidão de gentes que caminha sonâmbula.

Apesar da neblina esparsa,
nunca esqueças em tua gôndola
as borboletas acrobatas
e as garças que enfeitam a vida.

Distribui as belezas do teu coração
no sonho de unir ombro a ombro
e encurtar todas as ilhas
porque teu título de canoeiro é o mesmo de
cada ser vivente que conduz uma canoa.

Assim, o teu dia se tornará modelável em pedra-sabão
no canto açulado de um azulão
e com a alegre algazarra das maritacas
vinda da mata cerrada e isso,
com certeza, contagiará outras almas.




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