domingo, 30 de novembro de 2014

Engenho















                                           Para Karla Nascimento

Ao final, a ramagem de cipreste alisou-se fina
em cabelos e acalmou o agreste chão,
polvilhado em desmantelos.
Aquelas viagens longas, tornaram-se mais breves
valorizando, enfim, as lembranças mais leves.

Ao final, arrebentou-se solene aquela semente
que anteriormente era a mais resistente.
Serenou-se o espetáculo notável dos ímpetos
e as astúcias, folgaram-se aliviadas nos vínculos.

Ao final, sob o efeito nutriente de um vendaval,
os passarinhos mais velhos e enfraquecidos,
resolveram visitar um deus marinho, e o sacrifício
encontrou no azul límpido o final de um crucifixo.

Ao final, tornaram-se planas as ladeiras agudas e
serena, a descrença insana recitou uma sutra
porque em paz, os esplendores acordaram-se do sono
mundano para o incandescente brilho e a pele gasta
no engano, valorizou as rugas na estrada de cada ciclo.

Ao final, a nuvem fria transformou-se em alegria,
o engenho do tempo dissolveu as esquinas e,
num antigo madrigal, as antipatias rederam-se mínimas.

Ao final, cada objeto em repouso agradeceu
seu lugar de pouso e rendeu graças ao Vigia,
pois tudo se resolveu misteriosamente
como não se sabia e fossem desnecessárias
aquelas preocupações insistentes do início do dia.




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quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Psicanálise
















Obstruído ego, há silêncio em tudo.
O mundo ficou mudo assim que
consumiste anestésico.
No vale de sombras,
onde não existem  árvores,
apenas o amor é o verdadeiro milagre.

Massageado ego, não te esqueças
que todo sucesso é turvo.
A ilusão elevada ao cubo é distração
que não te deixa mudo
ao fabricares o orgulho e o entulho. 

Acomodado ego, para mais de metro
vai o teu elástico.
Quando não fores mais estático,
enxergarás teus medos,
tuas vulnerabilidades,
e os arremedos de felicidade.

Obstinado ego, esquece um pouco
o teu magistério cego.
Não há lume nesse minério velho.
O que não presumes,
é que a tua insegurança e teu ciúme,
tua inveja e tuas inclinações,
fazem-se de árvores no vale de sombras
no reinado das tuas ilusões.

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domingo, 23 de novembro de 2014

Vitória-Minas














Pelo ferro vai o trilho, o minério,
gameleira, lua cheia, noite alta,
madrugada, vai o dia, vai o rio,
passa-casa, passa-casa, passa-casa.
Passa breve a parada, passa-morro,
passa-lago, passa-carro, passa seco,
passa barro, passarinho, passa ninho,
passa gosto de cocada, passa nuvem,
passa moça, passa sonho, passa fundo,
passa tempo, passa raso, passa caso
por acaso, passa túnel, passa certo,
passa vale, passa mina, passa agosto,
boi rumina, passa lama, passa iodo no salobro.
Passa doido no delírio do seu ouro,
cata o cisco, cata-mica, cata-couro e cata lodo.
Passa ponte num instante, passa-ano,
passa monte, passa fundo, passa raso,
passa feira de mercado, passa manga
na mangueira, passa fruta, goiabeira,
passa cerca fazendeira com cigano acampado.
Passa poste, passa rua, todo dia
passa tudo, correria, bate-perna, bate-perna.
A menina na janela imagina a novela,
passa-casa, passa tempo numa espera,
no vazio de uma tela passa tudo numa reta,
passa curva, passa logo o pavio de uma vela,
passa trilho, vai de lado, vai correndo deslizado,
o navio já espera, já espera, já espera,
numa tela azulada vai embora nesta hora
vai levando, vai levando todo ferro retirado ...



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quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Poesia














Não fique triste, Nietzsche,
mas eu prefiro Jesus.
Não pela cruz,
mas pela luz infinitamente linda
que nunca finda.

Desculpe o meu delírio, Marx,
mas diante de tanta beleza,
foge-me as palavras
feito flor nas águas
de uma correnteza,
pois que a divindade
é de tamanha simplicidade
que é infinita fita envolvente
a costurar somente
os inocentes que se habilitam
a serem seres que não são
nos atributos seus,
juntos ao coração de Deus,
na sintonia de irmãos.

Perdoe-me, ciência material,
mas nunca existirá
cálculo integral capaz de avaliar
a grandeza Daquele que é
a própria Natureza e está presente
a todo instante no fundo e na beira,
mesmo que o postulante nela não creia
e argumente a fragilidade
como necessidade de vê-la.
Essa grandeza é a causa dos ventos,
do oceano imenso, da noite e da manhã,
do calor, da calma irmã, da chuva, 
das estrelas, das estações 
e de toda nobreza que brota nos corações.

Perdoe-me Marx, mas
a superestrutura não é a ideologia
na conclusão prematura
de que o mundo é uma elegia injusta.
Além das ideologias paira uma lógica invisível,
que mesmo sendo irreconhecível, em tudo atua.    
Da mesma forma, o super-homem
não é aquele que anda numa corda bamba
e goza do direito de ser homem.
O super-homem é o ser humano
sem cometer o engano
de recusar o seu próprio tamanho.
A vastidão insondável dos mistérios,
que seja puro encantamento
no vendaval dos intentos em defini-la.
Seja infinita trilha feita de fé,
indescritível e incalculável,
mas alcançável naquilo que é
pela intuição da verdadeira Poesia.









quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Globalização














A exemplo da antiga Roma,
a felicidade globalizada
afirma-se além fronteiras e é cosmopolita.
Bebe na taça o melhor da vida
e propaga o corpo de Alcibíades
pelo sinal do satélite nas miríades.
Mas, na verdade,
é esfaqueada em dívidas
e vive em lugares ermos da cidade.
Vive nas barrancas de rio
e nos morros de lama,
longe dos frigoríficos
e das lojas de utensílios.
O seu nome, a manhã baldia
não proclama e nem pronuncia,
porque vive sempre com fome
no banquete da tecnologia.
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domingo, 16 de novembro de 2014

Matraca















No lodo dos engodos,
a palavra corta o outro lado da faca
e forma um cadafalso enquanto caça.
É bem capaz de descer do céu para o esgoto
e fazer nuvem de fumaça
para enganar os outros com sua barca.

Enquanto a palavra afiada dorme no sossego
do leito em formidáveis ternuras,
no passeio das intenções futuras
multiplicam-se os gatos que revistam
migalhas nos cantos dos telhados
e estendem a mão ao que acumula.

Se o lado certo repousa,
evolui a lâmina do outro lado
e, numa fraqueza de louça,
a voz que deveria ser um brado,
deita-se em cegueira de existência
diante da indolência no errado.

Antigos cavalheiros tornam-se velhacos
e passam a ocupar o espaço alheio
porque o que estivera antes elevado,
confundiu-se por inteiro com o que há de baixo.
O Cruzeiro do Sul e as baronesas da lagoa
fazem amizade à queima-roupa,
e as  coisas que deveriam ser ditas,
tornam-se esquecidas no fundo da boca
em nome da palavra solta, que tornou-se falsa
no interesse ou no leito de sua pausa.


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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Olhos roídos














Ando à toa no sentido de
um sujeito qualquer pela cidade.
Faço minha, a responsabilidade
de andar com os olhos roídos,
a procurar o sentido perdido
do verbo amar.
Faço-me intencionalmente distraído
numa astúcia lúcida,
e espicho o pescoço
para avistar algum rosto
que esteja amando de verdade.
Mas na cidade tudo é misturado.
Confunde-se alhos em bugalhos
e cisnes em farrapos,
e o amor é uma distração
disfarçada nas frases da televisão.
Ama-se dizendo eu te amo toda hora,
sem se importar que o amor
é a solidariedade que vigora
e queima o fogo prazeroso
na vastidão do gozo sem
se extinguir a toda hora.




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Faixa de Gaza














Na Faixa de Gaza,
um anjo reza no impulso beligerante
e aquartelado de uma cidadela.
Reza numa silenciosa promessa alada,
cuja resposta virá nos momentos difíceis
em que as asas dos mísseis
escapam da cela.
Depois das explosões e da fumaça,
depois da destruição que devasta,
é bem provável que tudo pareça
um vazio de nada.
Então, nos campos onde deitaram-se os corpos,
nascerão flores para receber
continuamente uma nova safra de gentes.
Nos portos, onde a primavera
da natureza humana nunca se descansa,
haverá outro ciclo de oportunidades
em se desviar dos precipícios
na contínua promessa de felicidade.
O anjo reza sabendo de tudo isso.
Reza, compreendendo o fulcro
das intolerâncias no mar das ignorâncias,
mas, ainda assim, reza.
Confia que a trágica cena de guerra
seja uma pequena flor de inspiração
e esperança em melhores dias
no coração de algum poeta.

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quarta-feira, 12 de novembro de 2014

TIRADENTES




                               











                        Para Francisco Sales

Numa cidade antiga, Minas conta estórias
nas pedras tortas de uma tarde luminosa.
Os músculos de carvalho escravo as estenderam ali,
em ziguezagueado, para guardarem
o destino dos cascos dos cavalos.

No batente das portas, no arco das janelas,
no sereno das lanternas, dorme o tempo colossal.
Dorme sussurrando o limo longínquo do passado
no antigo chafariz de pedra.

Nos intervalos de ramagens
que nasceram no vão dos telhados
tudo é verde-acinzentado pois que debaixo
do céu eterno conspira a voz dos heróis,
a delicadeza das musas e a esfinge dos poetas.


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segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Pendores
















Se hoje mais tarde, ao descerrar
a cortina, o espetáculo
não for o que se imagina,
que as mãos dadas apitem a urgência
em pulmão de cigarra e o sol, em espigas,
coloque as expectativas 
dos nervos em desmantelos
na devida proporção da calma.

Se hoje escurecer mais cedo,
que a luz esclarecida e dissipadora de monstros
leve para longe os medos.
Que as mãos unidas, nas nuvens errantes
durante a noite vacilante,
orientem a estação da vida.

Que o auxílio se torne uma arma no exílio
e faça outro desfecho na manhã de flamboaiã.
Que no lugar das queixas nasçam roseiras
e o otimismo seja a grande bandeira.

Se fizermos isso, o nosso egoísmo
não será mais um andarilho
cuja lamparina ilumina o trilho enaltecido
a buscar na vaidade o próprio brilho.
Faremos desse auxílio 
nossa maior virtude nos empecilhos
e nos demoraremos o máximo possível
em conversas adoráveis ao pé da fogueira,
ouvindo o cantar dos grilos no luar amolecido.
O nosso coração, que vivia então só,
não poderá negar que a solidão
de sua constituição de pó
é uma rosa talentosa repleta de pendores,
cuja vocação amorosa é a de se elevar
na superação de suas dores.
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sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Grande Amor

















Nos dias de guerra e chuva
de papel picado na rua,
há um torvelinho aberto por uma boca feroz
para arrastar o sino até a foz.
As mazelas da Nova Ordem parecem velhas
como são velhas as façanhas festivas
acesas no braseiro do céu
e a garantia do arsenal das ogivas
que coloca famílias no banco dos réus.

Porém, a paz está preservada no vento vadio,
que evolui além de Israel
e participa da manhã nas colinas de Golã.
Esse vento anônimo,
muito além dos poderes atômicos
dos grandes blocos econômicos,
chega com os pés macios,
como se não lhe houvesse um rumo
definido no mundo.
Chega descalço das falanges do infinito
num testemunho,
e é como se a eternidade
estivesse presente a cada segundo,
confirmando o oceano superior
acima dos possíveis planos,
que por egoísmo ou por engano,
não percebam o Grande Amor.

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segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Os Botocudos















Os índios botocudos do futuro
serão ultramodernos e cibernéticos
e não contarão mais com
a floresta do Rio Doce como escudo.
Alguns poderão ser encontrados em alguma calçada,
tendo nas mãos um litro de cachaça,
e nem se lembrarão de que já
foram senhores do rio
e navegavam nele horas a fio.

Os índios botocudos do futuro
que se salvarem da dizimação
e aceitarem a promessa da salvação,
viverão recostados em algum muro
e de nada se lembrarão da noite estrelada.
O vento varrerá do seu segredo
a Lagoa Dourada e a Serra de Prata
e não haverá mais gritos
porque no silêncio dos eruditos,
tudo deve ser contido.
Quando decidirem, numa prática rotineira,
garimpar o ouro de antigamente
em terras estrangeiras,
em alguma foto eles parecerão mais bonitos,
trabalhando duro na neve dos Estados Unidos.


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