domingo, 24 de novembro de 2013

A criatura

















Resultado do acúmulo de muitas partes,
eu quero este meu traste banhado em bravura
feito a herança da criatura de Frankenstein
que, mesmo costurada em partes,
segue confiante para Jerusalém.

Se há liberdade em seus passos,
os erros, acertos e medos,
serão folhas de uma árvore
cuja escolha caberá ao vento dizê-lo e,
assim, não haverá outra ordem senão crescer.

Desovo, então, algum ferro velho para o sangue,
alguma garrafa velha e vidro colorido para os olhos,
algum bronze esquecido para a pele,
algum mármore quebrado para os ossos.
Desovo tudo isso porque o traste
tem corpo de gólgota e coração de ególatra,
por isso se encolherá diante da degola.
Necessitará de um coração despojado
que não pense em recompensas e que,
na chuva alta e fria da noite,
aguente firme a falta de abrigo.

Necessitará de uma humildade
que não more no inoxidável,
mas na ferrugem e nos germes da sucata:
o passado e o lixo,
onde a vida deflagrada já marcou presença.

Quero que o meu filho compreenda,
em sua existência, que amar não é uma condição.
Amar os semelhantes e compreender
o limite das incompreensões
é um exercício solidário a ser instalado
em algum lugar do coração.

Porque preciso desta bandeira,
tento construir ao vento este filho
com a nobreza dos trastes serenos.
Meu desejo aberto são dedos e
puãs de caranguejo.
Fecho os olhos e garimpo luz
no barro das manhãs.
Minha esperança de crescer clama
e, no limite do escuro,
me aguardam as tais figuras,
cada qual com uma cura em forma
de oferenda para a minha criatura.



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sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Criação do Mundo





















Num movimento lento, a calota polar
dança vestida de branco.
A noiva, em flor de laranjeira imaculada
e com o amor de imã,
tem numa caixa um gesto magnético e,
com a voz divina, chama pelo nome,
uma a uma, as ovelhas que pertencem
a seu campo de flores.

A exemplo dos planetas e das palavras,
os íons agrupam seus amores num manto d’água
e a cabeleira da cachoeira
farta-se entre as pedras e palmas.

São as eras, uma a uma, as próprias ovelhas.
Na primeira, a engrenagem estática gira o moinho e,
num torvelinho, aparecem os minerais,
o vírus, a bactéria e os projetos de alma.
Na segunda, as moléculas agrupam-se,
e surgem as plantas mais simples e os animais.
Na terceira, há esta música misteriosa
na atmosfera gasosa: música mágica,
constituída de intestinos e pernas,
cujo destino sempre perguntará pelo seu nome:
o próprio homem.


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terça-feira, 5 de novembro de 2013

Estrella Galícia















                                    Para Concha Rousia

As ruas de Santiago de Compostela são galegas.
Distraem-se vesgas por entre igrejas e promessas
mas, mesmo assim, existe a menina Conchita
com um clarão na vista que a tudo recicla:
o momento em que o horizonte enfarta,
o besouro franzindo a tarde,
e a cigarra que dispara.

As ruas de Santiago de Compostela
possuem labirintos de seresta
e o feixe seco das uvas de outrora
na música de viola.

Nas ruas de Santiago os mortos
que não estão enterrados em seus corpos
fazem saques nas cascas das árvores
e vivem de porta em porta a pedir esmolas.

Pelas ruas de Santiago há trilhas cavadas
por andarilhos de sapatos, mas,
no chão abaixo do granito liso,
dorme o verdadeiro ouro sem ser incomodado.




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