quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Oração ao quebra-queixo














Salva-me,
Oh, tabuleiro de quebra-queixo!
Como a bexiga se salva no mictório,
Como a bicicleta se salva na roda
Como o glóbulo se salva na esfera
Como eu me espero
E me salvo nesta espera.

Mas eu sei o caminho,
Eu sempre soube
A paisagem do caminho decorado.
O rio entrecortando de espelhos os bairros
Salvava-se na prata de seu maço em sol,
O açúcar da cana:
Na garapa de seu colmo,
O velho dos balaios: nos bambus macios,
O coqueiro das casas:
No domingo de ramos,
As chuvas da montanha:
Nas cores do arco-íris,
A bola de couro:
No jogo dos vizinhos,
A sede da escola:
No picolé de abacate,
O gosto de batom:
No primeiro beijo.
E a felicidade
Era tão grande por tão
Poucas razões
Que ela andava de ônibus
Cismando o tempo todo
Na paisagem da Rio-Bahia.

Depois vieram outras felicidades,
Tantas foram que se dividiram
Sinalizando várias ruas:
Um rio se arvorando pelo vale.

Hoje tenho muitos números
Mas meu nome de batismo
É José Bispo Ferreira Filho,
Descoberto em 22 de abril,
Uma quarta-feira estrelada de 1964,
E preciso ser salvo

Da ausência de janela,
Do perigo turvo,
Do asfalto liso,
Do sopro mudo,
Da ausência de mato,
Da pedra-escudo,
Do olhar em cisco,
Do sangue-suco,
Da ausência de Vera,
Do roxo em luto,
Do obtuso vidro,
Do amor escuro.
Porque vos digo a minha estória,
Meus amigos e inimigos,
E não escondo o que sinto
E, às vezes, me sinto
Soldado sem solda
Num barco sem âncora,
Relevo plasmado
De espanto e Gôngora,
Ponte sem grampo,
Graveto de escombro,
Xarope sem santo,
Noite de assombro,
Guerreiro inerme,
Isqueiro sem chama,
Lago profundo
Com fundo de lama.

Valei-me, tabuleiros de moleques,
Porque minha a força reside em inventar
O mundo com sabor de quebra-queixo
Que não quebra o queixo,
Que não quebra o dente,
Que não quebra a alma,
Que surte semente,
Que encoraja o homem,
Que move o seu barco,
No mar ou no rio sempre para frente.


Publicado no livro “Povoado”, 2006,
Editora Scortecci – São Paulo


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4 comentários:

  1. Nossa, Bispo, quantas lembranças da infância vieram-me! rs Muitas...

    Beijos

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  2. Seu Dadão adverte:
    quebra-queixo é prejudicial às obturações.
    Abração, poeta!

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  3. Pois é Taninha: Pirulito, picolé e quebra-queixo. E vamos nós seguindo rio acima. Espero que suas férias tenham sido ótimas. Beijocas, querida!

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  4. Seu Dadão teve muito trabalho com as panelas... Mas valeu a pena, não? E salve as dentaduras do mundo. Abração, mano querido!

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