terça-feira, 27 de maio de 2014

Ternura



















Se aquele eterno feito de ternuras
e respostas num fluxo intenso e inalterado
é um mar preguiçoso que se movimenta sem pressa de chegar,
haveremos de confiar na eternidade branda rompendo
muralhas esplêndidas, deixando um rastro de espantos
acumulados nas lutas ferrenhas.
No embornal, cada espanto sabe que a sua escolaridade
é uma dádiva digna de confiança e assim confia na divindade.
Por sua vez a divindade, que tudo sabe,
preserva a memória dos finais perdidos,
dos nossos entes queridos, 
escondidos feito pontas de obeliscos.

Em algum nevoeiro denso e sombrio, 
circundado por algo incompreensível,
a sabedoria, que sempre evita desperdícios, 
guarda respostas antigas
e deixa que cada multidão siga algum destino numa pequena ilha
porque o sol suave, sem o mínimo de intervalo, sempre brilha.
Qual bálsamo bendito entorna-se em ruas desconhecidas
e as pedras dos percalços, 
que há muito conhecem os mormaços,
deixam-se  assim ainda mais quietas cada qual,
na zelosa tarefa de existir 
acima de vigílias ou expectativas e de serem
roladas ao cabo dos dias naquela suavidade prenha de poesia.





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domingo, 25 de maio de 2014

Telhados


















A paisagem infinita dos telhados e cúpulas
guardam a alegria infinita da vida.
Os grafites dos muros guardam esfinges
e as bocas feridas de frio
saúdam a multidão imaginária.
Mas pode-se conquistar o céu
no vento suave de um janeiro qualquer.
Longe dos olhares intrometidos
e do teatro das marionetes
pode-se desejar todas as coisas lindas,
todas as imagens plantadas na memória
pela televisão e pelas novelas.
Do outro lado, pode-se beijar em público
sem as faíscas dos olhares.
Pode-se cometer indecências em beijos e risos.
Pode-se confiar que tudo dará certo além das palmeiras
povoadas por cachos de cabeças que olham para baixo.


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domingo, 18 de maio de 2014

O homem de terno
















O saco de cereal e os ratos eram convivas.
Trajando um terno bem cortado,
chegou outra vez o homem com a bíblia.
Tão afastado quanto possível das multidões,
havia ele conquistado pequenas ilhas de confiança
com a sua palavra de cavalo baio.
Guardava na rouquidão um calor suave que
fazia breves intervalos.
Balançando a cabeça, ele fazia gestos alargados
e ziguezagueava pelas vendas da vila falando do Apocalipse
para as moças que gostavam de calipso.
Atrás de um arbusto, próximo dali, 
havia um gato sarnento
que dormitava em jornais de outras palavras,
quase dissolvidas, numa cuba de pedra ao final da rua.
Ali, Deus também morava sem os grifos de caneta
esferográfica que destacavam versículos.
Do telhado, alguma coisa vigiava a todos.
Eram as nuvens brancas que navegam
silenciosas na grande fascinação dos enigmas.


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sábado, 17 de maio de 2014

Ouvidos














Para ouvir o sopro antilírico
que faz morada de sanhaço
no beiral das casas,
precisarei de maior
exuberância nos ouvidos.
Precisarei não ouvir o vento
no bambuzal do quintal,
onde há uma cotovia
que tem cor de bandeirola,
e arrumarei novas palavras num cesto
junto a outros perigos.
Farei orelha de bananeira
para o sussurro dos arrepios
e acumularei experiência
na altura de uma carnaúba adulta
ao escutar os dragões que
recolhem nas nuvens de hulha
as fagulhas para serem atiradas
nas choupanas das resistências humanas.
Precisarei da tesoura, gilete
e crucifixo porque meu ouvido
só ousa escutar o que é bonito
e rejeita o lixo e o fel dos precipícios.

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