quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O passeio

















Homem e cachorro passeiam
ao sabor do vento.
Passeiam encarnados e pulsando odores
que entram por suas narinas,
percorrem-lhes o corpo
e desatam-se ao final da tarde.
O vento é liso, a calçada é dura, a paisagem é curva.
Passam carros, outros homens, casas e figuras.
Longe está o que ficou para trás,
À frente um alvo, ponto-final em aguarrás.
Quantas horas são? Inexiste o tempo.
O espaço é espesso e de textura
aveludada como um pelo.
Os sons dos carros entram-lhes aos ouvidos.
O bronze retine e eles escutam-se
andando com passos firmes.
O homem olha o volume das coisas,
pensa e calcula. O cachorro late.
Ambos misturam seus corpos à tarde.
Há um fluxo que não se assusta porque não sente.
Há um impulso a cada passo à frente.
Os obstáculos formam o espetáculo.
Quantas horas são? Apenas uma brevidade
inundando a intercorporeidade.
Homem e cachorro transitam tranquilos
na tarde fugaz dissolvendo-se em aguarrás.


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quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Incontinência
















O telhado do universo é transparente
para uma lei implacável
que desaba escandalosamente nas almas.
O seu ruído de pluma possui
sonoridades de bruma
porque ás vezes é um anoitecer vagaroso
que ao acumular-se adiposo transforma
seus vapores condensados
num rio caudaloso.

O sono das águas é formado
por tempestades e sereno
dos antigos templos
cuja larga sala abrigara
em outros tempos preces e falas.

Por isso o universo é incabível
e incorruptível mesmo quando indiferente.
Põe-se a tecer intrigas a todo instante ciente
e ao entrelaçar os ramos da vida
naquilo que em maior necessidade urge
desabrocha-se lentamente
como quando a rosa surge
e nos diz: - Eu sou aquele que se faz de ausente.


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quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Aos corações
















Peço aos quatro ventos
que engrossem o sentimento.
Os quatro ventos estão nos
quatro cantos do mundo
e assopram em vertical profundo.

Ao que estava esquecido e dissolvido,
peço que se torne concentração sólida.
Às esquinas retilíneas e brancas,
que se convertam em bordados e chagas.
Peço feridas bordejando pássaros nas
marcas que voam e doem e
nas picadas marcadas que doem e constroem.

Então é melhor aos corações que haja fogo
e que esse fogo desabroche a paixão de novo.
Ao coração duro como a pedra desejo a dissolução
pois que a lua é bela apesar da selva e a pedra
não deve ser obstáculo se já é parte do espetáculo.
Desejo ao coração patife espatifar-se em bife,
ao coração de mármore espichar-se em árvore.
Ao coração contábil,
desejo um incêndio inigualável.

Ao coração magoado e ressentido,
desejo muitos curativos.
Àquele que tirou férias prolongadas,
desejo urgências inesperadas.
Ao coração desiludido desejo
que não se acovarde diante do perigo.
Ao coração de rochedo, que se fechou ao medo,
que lhe sobressalte um raio perdido
partindo-lhe ao meio.
Ao coração estéril às flores por causa da dor
desejo um grande regador.
Ao coração desmobiliado
desejo um inquilino empossado.
Desejo, ao coração sombrio, um dia claro
e uma altura de dez pavimentos
para a qual o racional se desmanche de maneira
sobrenatural e o inevitável aconteça.
Pois, por incrível que pareça, o que antes era certo
pode se tornar inexplicável e o deserto irremediável
pode originar a multidão daquele que sente
apenas a falta da pessoa ausente.


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quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Oração ao quebra-queixo














Salva-me,
Oh, tabuleiro de quebra-queixo!
Como a bexiga se salva no mictório,
Como a bicicleta se salva na roda
Como o glóbulo se salva na esfera
Como eu me espero
E me salvo nesta espera.

Mas eu sei o caminho,
Eu sempre soube
A paisagem do caminho decorado.
O rio entrecortando de espelhos os bairros
Salvava-se na prata de seu maço em sol,
O açúcar da cana:
Na garapa de seu colmo,
O velho dos balaios: nos bambus macios,
O coqueiro das casas:
No domingo de ramos,
As chuvas da montanha:
Nas cores do arco-íris,
A bola de couro:
No jogo dos vizinhos,
A sede da escola:
No picolé de abacate,
O gosto de batom:
No primeiro beijo.
E a felicidade
Era tão grande por tão
Poucas razões
Que ela andava de ônibus
Cismando o tempo todo
Na paisagem da Rio-Bahia.

Depois vieram outras felicidades,
Tantas foram que se dividiram
Sinalizando várias ruas:
Um rio se arvorando pelo vale.

Hoje tenho muitos números
Mas meu nome de batismo
É José Bispo Ferreira Filho,
Descoberto em 22 de abril,
Uma quarta-feira estrelada de 1964,
E preciso ser salvo

Da ausência de janela,
Do perigo turvo,
Do asfalto liso,
Do sopro mudo,
Da ausência de mato,
Da pedra-escudo,
Do olhar em cisco,
Do sangue-suco,
Da ausência de Vera,
Do roxo em luto,
Do obtuso vidro,
Do amor escuro.
Porque vos digo a minha estória,
Meus amigos e inimigos,
E não escondo o que sinto
E, às vezes, me sinto
Soldado sem solda
Num barco sem âncora,
Relevo plasmado
De espanto e Gôngora,
Ponte sem grampo,
Graveto de escombro,
Xarope sem santo,
Noite de assombro,
Guerreiro inerme,
Isqueiro sem chama,
Lago profundo
Com fundo de lama.

Valei-me, tabuleiros de moleques,
Porque minha a força reside em inventar
O mundo com sabor de quebra-queixo
Que não quebra o queixo,
Que não quebra o dente,
Que não quebra a alma,
Que surte semente,
Que encoraja o homem,
Que move o seu barco,
No mar ou no rio sempre para frente.


Publicado no livro “Povoado”, 2006,
Editora Scortecci – São Paulo


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sábado, 5 de janeiro de 2013

Maquiavélico


















Ser distante a ofensas
numa paisagem
de azul amolecido.
Guardar desaforos
numa caixinha de fósforos e,
sem decoro, tornar-se
grão de trigo.
Entorpecer o tigre 
ferocíssimo e,
em silêncio, 
vigiar o vão onde
cabem rugidos
mas, acima de tudo,
não enfartar-se de raiva,
não entornar-se de mágoa,
não alvejar-se de tiros.
Eis o fino trato
para o cordial inimigo.


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