sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Os amantes













No céu, por uns instantes,
ao sul de alguma noite,
decifra o amante a cisplatina fria
numa prata luzidia
que antes, tudo negava, nada queria.

Agora, o sapo murmurante
deixa de coaxar sua fêmea e,
com a língua pegajosa,
lança-se ao mar estendido,
depositando sobre o pano
o gemido colhido no raiar da aurora.

Descansa, iça a alma que descamba
e recupera o fogo amanhecido
para a chuva desastrosa que a tudo inunda,
mas que evapora esbraseada
nas gretas profundas.

Ela, a fêmea, oferece um abraço de pernas
e um esgar de cavalos para cavalgar
com a anca aberta a lua dadivosa.

Ele, o macho, oferece o navio guardado e
um ímpeto bravio para naufragar
amarfanhado todos os desvarios.

E a oferta dos dois é uma só astúcia
arqueada na tempestade revolta que,
fatigada, em gemidos, ecoa.
Os amantes e, só eles, num instante,
produzem diamantes.


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quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A emoção
















Eu me esqueço muito quando busco
pensativo o fluxo que há eterno
e incrível atrás do mapa onde,
na sombra de uma emoção invisível,
posso descansar no conforto
de minha casa e me deixar conduzir
por uma enxurrada que escorre feito
cavalo selvagem despejando rosas
em estações de paradas.

O mapa é evidente, mas prefiro
não ver o mapa.
Prefiro ver, no lugar das estradas,
o fluxo de uma correnteza
de curso d’água que segue rápida
formando ondulações que me levem
à madre das fadas por entre as pedras
e as florestas de limo molhadas
onde moram as principais palavras.
Ah, as palavras de água! Tão geográficas!
Feito sangue caudaloso elas percorrem
o meu corpo e me causam uma enchente de alma!

Mas há aquelas que, densamente,
apontam o limite do espaço cujo
tempo faz morada.
A superfície sólida por onde
meus pés aportam e andam enquanto
dormem os minerais e a vegetação
se enverdece: - o chão das palavras.
Chão continental ou pó de palavra
que vaga, ilha solta em mim,
resquício, terra, estilhaço de granada
do qual me tornei sua casa.

Quando sofro ou festejo, as palavras
impulsivas formam uma fogueira
que me queima por inteiro.
Recolho, então, o fogo de suas brasas,
guardo suas flores e fulgores
e componho uma canção apaixonada.

Mas, em tudo quanto posso, sou aéreo
pois é no vento que respiro o ar
imensurável carregado de mistério.
No ar e em seu reinado atmosférico
é onde permaneço por entre brisas
e tempestades essenciais.
É onde, abstrato, deito-me entre
palavras e busco, silencioso,
o segredo dos elementos originais.


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quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A luz dos mistérios














Quando eu me recordar das velhas canções
que já cantei e nelas localizar os desvios e desvãos
de tantos nãos,
talvez eu me arrependa do tanto que me enganei
e repita, como numa reza, as antigas promessas,
mas, por hora, tenho comigo que os enganos
deste meu modo de ser tão humano
em sua insistência de tartaruga
na longa jornada pela infinita rua
são a raiz magnífica de tudo.
Por isso, eu sigo e não me culpo.
Vou sem pressa e lentamente
feito uma criança que desperta
e ao olhar à sua volta, desatentamente,
não repara a luz da janela
nem os detalhes do quarto dela.

Quando eu me recordar de velhas canções
que descortinam a vida
e das desilusões nela tão repetidas,
talvez eu queira me esquecer de tantas
cidades cruzadas e das vezes em que, na madrugada,
quando mais distraída estava a alma,
deixei de vigiar a enchente
e, em minhas incapacidades de gente,
muitas vezes, me fiz de valente.
Quis ser o que não era para romper
o inverno em primaveras
e conquistar, outra vez, sem alarde,
esta fugaz sensação de felicidade.

Quando eu, uma vez mais, quiser desvendar tudo
naquela ambição de abarcar o mundo
e quiser penetrar no império que há na luz dos mistérios
onde residem as respostas
feito trilhas limpas na escuridão morta,
talvez eu saiba comemorar este tesouro que ainda
desconheço e sempre me convenço de que o mereço.
Este enredo que não sei e que me aguça aos sentidos
num indefinível sussurro aos meus ouvidos,
este lago guardador de atlântidas,
esta alegoria epifânica, este algo imenso e duradouro,
que me persegue feito um touro
na eternidade desta arena.




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quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Narciso



















Um dia, numa bacia esmaltada,
meu umbigo bailava.
Bailava o meu umbigo inocente
pois não sabia ele das tentações da vida.
Navegava feito nau sem rumo
pois ele não era ele e nem eu era eu.
Depois, a nuvem leve dos muitos eus me
fez artefato que às vezes chove sem parar
e perdi a alma dispersa na ventania, 
e criei espessuras para o meu passeio de rua.
Amealhei meus gravetos numa armadura dura
e fiquei vigilante do mundo
sem aquele olhar celeste que só os anjos têm -
os anjos, que são ninguém em sua candura.
E criei uma crosta terrestre feita de ferro
e vértebras que se erguem distintas dos outros,
que se admiram no espelho d’água
e se afogam manhãs inteiras a pentear cabelos.



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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Onde mora a Justiça

















Eu peço um outro momento – pois que
a lua enche e se esvazia,
o rio entorna janeiros e se despe em esqueleto,
a aragem mariana da noite fria vai-se
e chegam, enfim, as flores e o vento envolvente.


Eu peço outro caminho
e guardo o meu pedido em silêncio.
Embrulho esse seu corpo magro com o dourado das manhãs
por onde vazou a insistência das noites moles
e se consolidou misteriosamente um acaso.
Quem sabe, não haverá neste acaso a semente de uma outra estrada?
Quem sabe, a realidade não nos apresenta um susto?
Quero o susto bom. O susto inesperado como um vulto
a dizer-nos ofegante sua notícia boa. A despencar-se
de uma vez feito tromba d’água acordando a cidade
e, em sua novidade, deslocar as mágoas paradas
e os sentimentos que carecem de nova semântica.

É assim que estendo minha súplica atlântica
e a envio às nuvens em forma de fumaça
e cântico quase invisível.
Rogo pela justiça e sua casa, que é paladina.
Justiça que nunca termina
e que é tão infinita quanto a minha esperança.


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